sábado, 29 de setembro de 2012

23 - O Sonho

  Ouve-se uma sirene, é o despertador do celular de Renato que toca. Cabelo bagunçado, sem camisa, uma cueca samba-canção meio caído na cintura e um lençol amaçado cobrindo-lhe apenas uma das pernas. É assim que Renato acorda. O seu quarto está uma bagunça, mas isso não é novidade para ele. Cadernos de desenho, mochila escolar, vários lápis, lapiseiras e canetas espalhados pelo chão e pela mesa. Ele se levanta ainda meio adormecido. A luz matinal invade o quarto escuro por uma fresta, atingindo a face dele.
  Ele olha em volta. vê que está tudo diferente como estava antes. "Não acredito que foi tudo um sonho". Ele se levanta. Os pés descalços dão tapas leves no chão gelado. Passando ao lado da mesa, pega sua escova de dentes que estava sobre um desenho. Era Esdras.
  O som do atrito do metal com metal ao abrir a torneira é estridente. A água é gelada, porém, ele não se importa. Assim que começa a escovar os dentes, abre a torneira do chuveiro, a água nem quente nem fria vai caindo no chão e respingando em sua perna. Ele cospe na pia, se despe e entra no banho.
  Em um dado momento do banho, ele para o que estava fazendo e, olhando pro chão, reflete sobre o sonho. "Os gnomos, as batalhas, os diálogos... Tudo isso para o que?".
  Meia hora depois, pronto para ir ao colégio, passa pela cozinha, pega um saco de pães-de-queijo e sai.
  No ônibus já, ele, olhando pela janela, imagina tudo o que passou no sonho novamente.
  "Isso é normal para os humanos?" Perguntou Esdras.
  "Não. Poucos são como eu. Você, por exemplo, só existe na minha cabeça. Para os outros, você não é real, só é fruto da minha imaginação. Para mim, estou conversando com você normal, mas para quem me olha, apenas me vê olhando para o nada pela janela. Isso sim é comum entre nós: Desligar-se do mundo por instantes. A diferença é que isso já se tornou um vício para mim".
  "Entendo..."

sábado, 22 de setembro de 2012

22 - Um drible no Destino


  Uma voz angelical ecoou pela torre deserta. Sorrisos espontâneos tomaram conta dos rostos de Esdras e Renato ao ouvirem a resposta. Com um movimento leve de mão, a mulher que respondeu pediu e conseguiu a atenção de ambos e voltou a falar:
  "Não precisam se preocupar com mais nada, tudo o que precisava ser feito já não está mais no caminho de vocês. Vão. Vivam. Façam com que o Destino de vocês se cumpra. Que a Paz esteja convosco".

  Esdras agradeceu se ajoelhando. Ergueu-se e partiram lentamente.

  Ao passarem da porta que entraram, notaram logo que o dia voltou a ficar claro. A lua nem é vista aos arredores, não há homem suspeito algum e as pessoas agem como se nada tivesse acontecido. O destino realmente havia mudado. "Vamos, temos que encontrar Leila".

  São Paulo, Brasil. 14h32min. Domingo de outubro de um ano qualquer do século XXI. Leila está sentada em um Café de esquina no bairro Morumbi. Caminhando solitário em uma das ruas daquela esquina está Renato. Ela o vê primeiro e sorri, sorri um sorriso, não, o sorriso mais lindo e sincero que há. Um sorriso também tímido que é escondido por detrás da xícara.
  Poucos segundos depois, Renato avista a bela moça. Ela está sozinha, seria real? Os olhos dele brilham, a boca ensaia um sorriso, as mãos se apertam dentro dos bolsos e as pernas tremem ao caminhas. Um alívio lhe veio instantaneamente.
  Leila pousa a xícara sobre a mesa e se levanta arrumando a saia. Finalmente estão a pouquíssimos centímetros um do outro, ele, tímido, ergue os braços para abraçá-la, os braços a envolvem, fazem o contorno do corpo dela, mas não há toque. Leila, sorrindo mais, fecha os olhos e abaixa a cabeça. Quase que instantaneamente, Renato abraça-a com uma mão à cintura e a outra próxima à cabeça.
  Ela o abraça também.
  Um abraço longo, um abraço que não tinha fim, e era assim que ambos queriam. Um abraço protetor, forte e apaixonado. Um abraço tão intenso que sentia as almas dançando nesse ato de afeto. Não é um simples abraço, é o abraço de dois apaixonados.
  O destino parecia certo, arrumado e feito como deveria. Bem, realmente parecia...

sábado, 15 de setembro de 2012

21 - O Destino está traçado

  O ambiente está escuro. O silêncio toma conta. Feixes de luz lá no alto não chegam ao chão, formam uma faixa de claridade das brechas às paredes opostas. Ao enxergar essa luz, via-se o quão empoeirado estava o local. O cheiro de mofo dava enjoos em Renato.
  "Que fedor é esse?". Ele leva a mão coberta pela manga da camisa para tentar não cheirar. Ó tentativa falha a dele.

  "Esqueça e concentre-se. Apesar do silêncio, somos observados".
  Renato olha para cima e vê a escada em espiral ascendente. Enxerga a claridade contrastante à escuridão. "Esdras, não estava escuro lá fora? Por que será então que vemos essa claridade?"

  "Estamos em um lugar mágico. Essas frestas peneiram tudo, até mesmo a luz. Apenas aquilo que for realmente puro poderá passar, deixando tudo aquilo que é impuro para trás" e continuaram subindo. Metros e metros para cima em um breu jamais visto.
  Vários minutos se passaram até que os dois chegassem ao topo. É lá que fica todo o sistema do relógio. Várias engrenagens girando, cada um com o seu tempo, mas todos perfeitamente sincronizados. Um andaime é visto no centro, um caminho para que possa chegar às engrenagens. Abaixo, apenas um "abismo" direto até o chão. Do outro lado do caminho, há três moças que, aparentemente, estão flutuando. Não via-se os pés delas. Vestiam todas um vestido branco com mangas longas, um branco jamais visto, mangas mais longas que os próprios braços. Longos cabelos e uma face linda. Todas três emitiam um brilho não muito intenso, mas mágico, sobrenatural.
  "Espere aqui" sussurrou Esdras. Ele deu alguns passos em direção às irmãs e ajoelhou-se a poucos metros delas. "Perdão, mestras, pela invasão, mas foi um caso de urgência de protegido".
  "Prossiga!" disse a do meio. A voz dela era tão doce, suave e delicada, porém poderosa e cheia de vida. Aos ouvidos de um humano comum, chega a ser hipnotizante.
  "A alguns meses atrás, o meu protegido começou a correr grande perigo por forças malignas. Vimos que Lúcio está atrás dele. Outros que estão são os Venatores. Há também um homem misterioso que não conhecemos e nem vimos, mas deve sera origem dessas perseguições. Quero, digo, queremos saber se podem fazer algo por nós".
  As três se entreolharam. Ficaram alguns segundos imóveis, como se estivessem conversando. O silêncio passou a torturá-los. Insegurança e medo do incerto cobrem seus corações.
  Torturantes segundos se passaram até que veio, como num estalo, a resposta friamente dada: "Ajudar-lhe-eis".

sábado, 8 de setembro de 2012

20 - Ele

  Maria estava olhando uma loja de sapatos no shopping enquanto Leila estava na praça de alimentação esperando-a.
  "Você não vai comer?" perguntou Maria enquanto chegava e sentava.
  "Não não. To sem fome" disse sem desviar o olhar profundo e perdido em pensamentos infinitos e distantes.
  Maria senta-se junto de Leila, deixa as compras em uma cadeira ao lado e inclina-se para tentar puxar conversa. Mas era obvio: não havia assunto algum para conversar. E ficaram assim, minutos quietas, apenas ouvindo os barulhos dos passos e conversar alheias shopping afora. Porém, logo Maria percebeu no que se tratava e foi logo ensaiando as primeiras palavras. Apenas mexia os lábios, como se estivesse fazendo testes antes de realmente falar.
  "Qual o nome dele?". Pronto, saíram as palavras que estavam loucas para viajarem até o ouvido da jovem. Pronto, veio logo o único assunto que pairava na mente de Leila: Renato! Não queria dizer nada pois sabia a repercussão que geraria falar dele, falar de quem é ele, o que passaram, o que viveram... O que irão viver.
  Leila dá de ombros. Se faz de desentendida. Porém, as maçãs-do-rosto rosadas de um momento para o outro revelam outra resposta. Encabulada, começa a olhar em volta a procura de conhecidos, mas por sorte (ou talvez azar), nada nem ninguém fora encontrado. Logo, ficando ainda mais vermelha, começa a fuçar nas sacolas, perguntando o que havia sido comprado. Nada ocorrera como o esperado. Maria insistia em perguntar 'quem seria o homem que fitava o coração da bela moça?'. E ficava cada vez mais envergonhada, até que, toda encolhida de vergonha e timidez, Leila solta um gemido, haveria ela soprado fracamente o nome dele? Sim. Ela fala fracamente "Renato" e logo treme toda.
  Maria, mesmo velhinha, escuta perfeitamente a voz rouca que havia passado pelos lábios da moça. Logo, sorri. Por dentro, ela faz uma festa, mas por fora... Bem, faz outra festa. Uma alegria radiante parece ter tirado toda a timidez de Leila. "Percebi logo que estava apaixonada. Sabia pois vi esse olhar. Ah! esse olhar! Tão puro e verdadeiro que palavra nenhuma consegue explicar, muito menos enganar aqueles que conhecem o olhar de um amor jovem. É o mesmo olhar que sua mãe tinha pelo seu pai. Ela sempre chegava em casa com aquele olhar, e quando descobri, ela me contava tudo, todos os detalhes do dia dela com ele. Os dois se amavam. Era, definitivamente, o casal perfeito".
  Ao se lembrar da mãe ao ouvir essas palavras, Leila derrama uma lágrima quase que imperceptível do canto do olho. Ao mesmo tempo ela sorri. "Lembrar dela me acalma. Sinto como se ela viesse e me abraçasse novamente".

[Silêncio]


















sábado, 1 de setembro de 2012

19 - A procura de um destino

  Londres, começo de tarde. Um eclipse estranho está no céu londrino enquanto uma chuva fina cai sobre as cabeças daqueles que não se importam em andar na rua nessas condições. Apaixonados, desesperados, curiosos, indiferentes. São esses os tipos de pessoas que não se importam em andar na rua nessas condições. No décimo-terceiro andar, um casal está em uma relação de amor e afeto. No prédio vizinho, no primeiro andar, um casal está brigando, com certeza, por um motivo banal. No terceiro, uma garota com headphones toca guitarra e dança. Na cobertura, dois amigos bêbados brincam na grade de proteção jogando cerveja para baixo e vendo no que dá. Dois homens atravessam a rua, outros três, do outro lado do quarteirão, três pessoas conversam e riem. Na porta do hotel, uma mulher segura várias sacolas de compras. Em um beco, moradores de rua tentam se esquentar.
  "Sejamos rápidos, Renato, antes que nos descubram". Disse Esdras que anda a passos largos sob um guarda-chuva. Apesar da situação, o barulho das gotas no tecido sobre as cabeças chega a ser calmante. Ao menos ameniza a pressão.
  No meio do percurso, um homem que caminha em um sentido contrário parece desconfiado, preocupado com algo, mas Esdras e Renato o ignoram e vão direto ao Big-Ben. O estranho entra num estabelecimento, aquele mesmo em que os dois estavam.
  Ele está nervoso, revira mesa por mesa jogando-as para o alto. Os poucos clientes presentes estão assustados. Vidros se quebram no chão e o homem, parado, grita, esperneia com muita raiva. "ONDE ESTÃO VOCÊS, DESGRAÇADOS?!?!? Porra, Vocês não podem ter sumido assim do nada! Não pode ser". Ele soca a parede mais próxima. Apesar de um físico aparentemente não muito forte, a parede quase é atravessada pelo murro. Rachaduras aparecem na parede, uma poeira cinza invade o local, o chão ao redor dele está todo coberto pelo pó e pequenas pedras, pedaços de concreto.
  A alguns metros dali, Renato escuta o barulho de gritos e vira-se para ver o que poderia ser. Ao olhar para trás, Esdras também olha com curiosidade. "Corre" disse ele e os dois começaram a correr. "Não pode ser. Como?"
  "Quem é ele, Esdras?"
  "Lúcio. Um senhor do destino renegado. Ele estava na prisão mais bem guardada do universo. A prisão de Tártaros. É lá que ficam os criminosos mais perigosos dos universos. Ele foi para lá por causa que ele sabia como criar os destinos não só dos humanos, mas nosso também. Nós, os senhores do destino, somos os únicos que mudamos os destinos de todos, menos os nossos. Como vocês, temos destinos, mas há uma parte de nossa vida que o destino não haje, e é lá que ele trabalhou para descobrir. O destino define as pessoas que conhecemos, as que amamos, enfim, você entendeu. Fazemos com que ocorra. Como? Bem, isso o destino não se intromete. Agora vamos, entre logo antes que ele nos descubra". E os dois entraram na torre do relógio.